A edição do ato constitutivo do crédito tributário (lançamento em sentido lato) dá oportunidade à identificação de um tipo específico de conflituosidade que se materializa sob a forma de “crise de legalidade”, instaurada em face da pretensão fiscal imputada, pelo ente político tributante, ao sujeito passivo tributário.
E falamos em crise de legalidade tendo em foco a circunstância de que todo e qualquer ato voltado à exigência de tributos deve ser, invariavelmente, submetido ao teste de (estrita) legalidade que é ínsito à atividade impositiva, controle este que poderá ser realizado internamente, mediante autocontrole a ser implementado por órgãos da própria administração tributária, ou externamente, a cargo do Poder Judiciário.
Diante disso, o sujeito passivo que estiver na contingência de ser cobrado de forma ilegítima poderá, em regra, adotar as seguintes providências: 1) impugnar administrativamente o débito; ou 2) se valer de medida judicial voltada à desconstituição da obrigação tributária. Em ambos os casos, o objetivo pretendido pelo sujeito passivo será o mesmo: restringir, total ou parcialmente, a eficácia do fato tributário formalizado pelo ato de lançamento, com o consequente afastamento (ou mitigação) da cobrança.
No que toca à mencionada duplicidade de meios de impugnação do débito tributário (administrativa e judicial), duas advertências merecem ser formuladas.
A primeira observação — que guarda relação direta com a noção de inafastabilidade da jurisdição (judicial) insculpida no artigo 5º, inciso XXXV, da CF — diz com a desnecessidade de esgotamento das instâncias administrativas para adoção das medidas judiciais. Poderá o sujeito passivo, à sua conveniência, abrir mão das instâncias administrativas para se valer, de pronto, dos instrumentos judiciais de controle dos atos impositivos.
A segunda advertência está vinculada à amplitude do controle realizado pelos dois meios de impugnação da obrigação tributária, sensivelmente maior no plano judicial. E isso porque o processo administrativo tributário se volta exclusivamente à revisão dos créditos tributários originados na forma do artigo 142 do Código Tributário Nacional (CTN) (lançamento de ofício), não havendo que se falar, portanto, em contencioso administrativo tributário desencadeado a pretexto de revisão de obrigações tributárias formalizadas no regime de autolançamento, tal como disciplinado no artigo 150 do CTN (nominado pelo CTN de lançamento por homologação).
Também sob o ponto de vista cognitivo, as instâncias contenciosas administrativas tendem a ser mais restritas que as judiciais, não sendo incomum a identificação de regras que expressamente vedam ao órgão administrativo judicante a apreciação de alegações concernentes à legalidade e à constitucionalidade do ato normativo que fundamenta a exigência. Aqui, precisamente, salta aos olhos uma grande contradição dos sistemas de contencioso administrativo tributário, tal como estruturados atualmente, e que se revela na circunstância de um órgão que é especialmente forjado para proceder ao controle da legalidade dos atos impositivos estar, por expressa prescrição normativa, proibido de fazê-lo com a amplitude desejada.
Em ambiente judicial, o sujeito passivo poderá se valer de dois instrumentos processuais capazes de produzir a desejada tutela desconstitutiva da obrigação tributária: 1) ordinariamente, o instrumento apto à dedução dessa específica pretensão é a ação anulatória de débito fiscal, cuja amplitude cognitiva e instrutória permite o manejo em face de créditos tributários formalizados diretamente pelo Fisco (lançamentos de ofício) e, também, pelo próprio sujeito passivo (autolançamentos); 2) alternativamente, poderá o sujeito passivo lançar mão do mandado de segurança (repressivo), ocasião em que deverá se submeter às restrições ínsitas ao procedimento especial que lhe é próprio, incluídos aí a reduzida amplitude instrutória (direito líquido e certo) e a necessidade de que a obrigação tributária impugnada haja sido formalizada por típico “ato de autoridade”, isto é, lançamento de ofício.
Ao fim e ao cabo, todos os instrumentos de impugnação do crédito tributário mencionados, administrativos e judiciais, cada qual a seu modo, têm em comum o mesmo pressuposto de atuação, isto é, a existência de obrigação tributária devidamente formalizada, comungando, também, dos objetivos a que se prestam, que é justamente o controle da legalidade do ato constitutivo do crédito tributário.
Rodrigo Dalla Pria é advogado, doutor em Direito Processual Civil, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professor do programa de pós-graduação stricto sensu (mestrado) do Instituo Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), coordenador das Unidades do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET em Sorocaba e Presidente Prudente e coordenador do grupo de estudos de “Processo tributário analítico” do Ibet.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 26 de setembro de 2021, 8h00