Por Fernanda Donnabella Camano de Souza

O tema da coisa julgada em matéria tributária pode parecer, à primeira vista, conhecido daqueles que militam na área.

Afinal, muito se tem discutido acerca do impacto dos precedentes sobre os efeitos da coisa julgada obtida pelos contribuintes nas ações judiciais antiexacionais de cunho preventivo (isto é, nas ações declaratórias negativas e nos mandados de segurança preventivos).

É certo, porém, que entre o preto e o branco existem várias tonalidades de cinza. Diversas são as nuances em que se insere o “macrotema” da coisa julgada em matéria tributária. Um desses tons conecta-se à questão prejudicial prevista no § 1º, I a III, e no § 2º, ambos do artigo 503 do CPC. Outros podem ser citados, como a possibilidade de a coisa julgada beneficiar terceiros, ou a relação de prejudicialidade entre a decisão judicial definitiva e o litígio instaurado na esfera administrativa, fruto da complexidade da relação entre Fisco e contribuintes em nossos tempos.

Aqui nos deteremos, porém, sobre o que destacamos de pronto — a coisa julgada sobre a questão prejudicial, anunciadora de intensa novidade no processo judicial tributário.

Para abordar esse ponto, partimos de três pressupostos: 1) que o contribuinte coloque em xeque a exigibilidade do crédito tributário com relação a um período demarcado no tempo, via, por exemplo, ação anulatória de débito fiscal visando fulminar o lançamento constituído no ano “X”; 2) que o faça sob o fundamento da invalidade da norma jurídica tributária que suportou o lançamento; 3) que se trate de relação jurídica continuativa, isto é, referente a eventos homogêneos que se repetem em períodos subsequentes ao do lançamento que foi efetuado, sendo enquadráveis, tais eventos, na mesma normatividade.

Perceba-se que o acolhimento (ou não) do argumento do contribuinte a respeito da (in)validade da norma jurídica de incidência tributária é subordinante da resolução do pedido. Reconhece-se a invalidade e julga-se procedente o pedido ou certifica-se a validade, negando-se o pedido.

A partir do CPC/2015, a questão jurídica subordinante faz coisa julgada com o objetivo de impedir a relitigação a respeito dos mesmos fundamentos decididos na ação primitiva. Pois é aí que reside a novidade. Que proibição à relitigação é esta?

Em outras palavras, se reconhecida a (in)validade da norma jurídica tributária com a consequente extirpação ou manutenção (a depender do teor da decisão) do lançamento fincado em um determinado exercício, a solução acerca daquela questão jurídica se projeta para outros exercícios, que não o delimitado no pedido da ação anulatória?

Uma resposta possível seria pela negativa, com apoio no argumento de que somente o pedido é julgado e, assim, se limitado no tempo (referente ao lançamento do exercício “X”), os fundamentos de decidir não “transcendem” para outros períodos além do indicado no pedido.

Tal forma de raciocinar deriva da história [1]. Assim é porque, durante 41 anos, o CPC/1973 determinou que a questão jurídica subordinante só se tornaria definitiva, se proposta a ação declaratória incidental. Sem contar com a interpretação restritiva da coisa julgada aos limites do pedido desde o CPC/1939.

No entanto, o CPC/2015 reconfigurou a coisa julgada sobre questão prejudicial, impondo que o juiz a resolva incidentemente no processo para chegar à solução do pedido a ela subordinado. O Código ainda dispôs que às partes seja oportunizado o contraditório, além de não incidir quando houver restrições probatórias ou limites à cognição.

Logo, se observarmos detidamente, há enorme potencial de impacto no campo tributário.

Partindo da premissa de que a resolução sobre a (in)validade da norma jurídica de incidência tributária é subordinante do pedido anulatório do lançamento relativo ao exercício “X”, como consequência, o contribuinte estará impedido de provocar o Judiciário, uma vez mais, para atacar a exigibilidade do crédito tributário constituído em outros exercícios, nas relações jurídicas de trato continuado, com suporte em idêntico fundamento jurídico, seja porque a decisão lhe foi favorável e a tais exercícios aproveita, seja porque lhe foi desfavorável “contaminando” os subsequentes.

Essa determinação se estende ao Estado-Administração, que poderá (ou não) constituir o crédito tributário relativamente a períodos distintos, observado o caminho adotado na resolução da questão prejudicial.

Tomamos de empréstimo as lições de Rodrigo Dalla Pria [2], adaptando-as, contudo, para afirmar que a solução a respeito da questão prejudicial da (in)validade da regra jurídica de incidência tributária produz o efeito normativo proibitivo da relitigação da mesma questão, entre as mesmas partes.

Contudo, há de ressaltar que a vedação de repetir o conflito no plano do Poder Judiciário diz respeito aos fatos geradores por ocorrer, uma vez que a solução da prejudicial — isto é, o efeito normativo que dela deriva — incide a partir de sua prolação. De outro modo, se fosse possível colher fatos pretéritos, provocar-se-ia instabilidade no sistema jurídico tributário, permitindo-se, por exemplo, a desconstituição de atos jurídicos consumados, providência irracional e atentatória da segurança jurídica, efeito que o próprio instituto da coisa julgada sobre questão prejudicial pretendeu afastar.

Essa conclusão é válida, inclusive, para a decisão de (in)constitucionalidade enquanto prejudicial do pedido nas ações judiciais antiexacionais, muito embora existam discordâncias quanto a esse ponto, ao argumento de que o inciso III do § 1º do artigo 503 do CPC vedaria aos juízes e Tribunais decidi-la como questão principal, atividade atribuída com exclusividade ao Supremo Tribunal Federal. Como se trata de mais uma nuance deste tema, nos propomos a discorrer acerca dele em outro texto da coluna.


[1] Conforme leciona Luiz Guilherme MARINONI em: Coisa julgada sobre questão. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters/Revista dos Tribunais, 2019.

[2] DALLA PRIA, Rodrigo. Direito processual tributário. São Paulo: Noeses, 2020.


Fernanda Donnabella Camano de Souza é pós-doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Advogada, professora dos Cursos de Especialização e Extensão em “Processo Tributário Analítico” do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e pesquisadora do grupo de estudos de “Processo Tributário Analítico”, também do Ibet.

Fonte: Publicação original em Revista Consultor Jurídico, 6 de junho de 2021, 8h03