Por Rodrigo Dalla Pria e Thiago Buschinelli Sorrentino

Façamos, por ora, um parêntese nas digressões de cunho técnico-jurídico-processual a que está vocacionada esta coluna para voltarmo-nos à análise de uma questão que, conquanto relacionada ao macro tema “processo tributário”, vincula-se mais de perto à perspectiva do fenômeno que está atrelada à eficiência da administração da Justiça Tributária, qual seja: o grande volume de litigiosidade que assola os órgãos de jurisdição tributária (administrativa e judicial) e o consequente déficit de efetividade que dele decorre.

No sistema jurídico brasileiro, a exigibilidade e a cobrança do crédito tributário estão imbricadas num fluxo jurídico-causal do qual necessariamente participam o sujeito passivo, a administração tributária e o Judiciário. A ordem de participação é multifacetada e, em alguns cenários, há redundância nos atos de controle.

Tome-se por exemplo um caso típico de lançamento por homologação (artigo 150, caput, do Código Tributário Nacional — CTN). De início, compete ao sujeito passivo interpretar a legislação tributária, verificar a ocorrência do fato jurídico tributário, calcular o valor devido a título de tributo e recolher o montante devido, antes de qualquer ação estatal. No melhor dos universos possíveis, se a autoridade tributária concordar com a conduta do sujeito passivo, ela irá homologá-la; caso contrário, constituirá suplementarmente o crédito faltante, ou lançá-lo originariamente, se o sujeito passivo tiver quedado inerte (artigo 149, IV, V, VI, VII e VIII do CTN).

Com o lançamento originário ou suplementar realizado pela autoridade tributária, abre-se a oportunidade para a realização do controle administrativo da validade do crédito tributário, conforme a legislação de regência de cada ente tributante.

Uma vez esgotada a fase de controle administrativo, a cobrança forçada do crédito tributário depende de intervenção jurisdicional, que se dá pela via da execução fiscal (Lei 6.830/1980).

Desse modo, o papel do Judiciário em matéria tributária é curiosamente ambíguo. Por um lado, ele é componente imprescindível do próprio fluxo de arrecadação, sendo comum encontrar notícias laudatórias baseadas no sucesso das cobranças. Porém, concomitantemente, também funciona como entidade de controle, preocupado não com a quantidade de valores obtidos ao erário, mas, sim, com a validade ou a invalidade do crédito tributário.

Em diversas oportunidades, constatou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que as ações de execução fiscal ocupam uma parte considerável da carga de trabalho do Judiciário, ao representarem aproximadamente 39% de todo o estoque de processos mensurado em 2019 e atingirem, no mesmo período, um percentual de 87% de congestionamento [1].

Para melhor entender o quadro e sugerir soluções, o CNJ iniciou a elaboração de um “Diagnóstico sobre o Contencioso Tributário no Poder Judiciário Brasileiro” (Convocação CNJ 01/2021 e Portaria Conjunta SEP-SRFB 02/2021).

Podemos elencar uma série de conjecturas para servirem como questões de fundo à investigação do alto índice de contenciosidade administrativa e judicial tributárias. Longe de se apresentarem como respostas, nossas reflexões apenas indicam alguns dos caminhos possíveis para se pensar o problema do congestionamento da Justiça em matéria tributária.

Destacaremos algumas delas.

Em primeiro lugar, é necessário identificar se o número de execuções fiscais é de fato elevado, e se essa magnitude se deve à inadimplência estratégica ou à inadimplência ordinária. O inadimplente estratégico explora os incentivos que a má estrutura das regras jurídicas lhe concede para postergar o pagamento de tributos que: a) sabe válidos e devidos; e b) possui condições econômicas para pagamento. De modo diverso, o inadimplente ordinário deixa de pagar o tributo de modo justificado, por, exemplificativamente: a) com sua validade não concordar; b) com sua legitimidade não concordar; ou c) não possuir recursos para quitação [2].

Se houver um índice elevado de inadimplentes ordinários, a isolada modificação das normas do processo tributário será insuficiente para resolução do problema. O desafio é criar mecanismos capazes de desestimular a ação do inadimplente estratégico sem prejudicar a recuperação do inadimplente ordinário.

Uma outra hipótese de investigação se refere à necessidade de especialização dos órgãos jurisdicionais. Supõe-se que o processo de recrutamento e a cultura de desenvolvimento de juízes e de servidores não incentiva amplos nem profundos conhecimentos em matéria tributária, especialmente de questões fático-técnicas necessárias para boa compreensão das vicissitudes dos processos produtivos. Essa falta de incentivo ao recrutamento ou ao desenvolvimento de especialistas aumentaria o tempo necessário para a resolução das demandas tributárias, bem como promoveria a prolação de decisões inconsistentes.

Cabe também examinar a política de distribuição de recursos entre os diversos órgãos jurisdicionais, considerados juízes e tribunais. Devemos indagar se os recursos disponíveis estão a ser destinados de modo eficiente aos centros de atuação mais demandados em termos de carga de processos tributários.

Numa perspectiva mais arrojada, seria possível cogitar a desjudicialização mais agressiva, com o incentivo à adoção de instrumentos como a mediação e a arbitragem tributárias. Mais polêmica seria a transferência de certos atos executórios, ligados à constrição de bens e a limitação de direitos, às próprias autoridades fiscais, sem intermediação do Poder Judiciário.

Todas essas medidas, com efeito, prescindem de aventuras e revoluções legislativas voltadas à reinstituição do processo jurisdicional tributário (administrativo e judicial), demandando pequenos ajustes normativos que, em boa parte, podem ser implementados por instrumentos infralegais.

Preocupa-nos, no entanto, a utilização dos dados levantados em estudos empíricos voltados à identificação dos gargalos decorrentes do excesso de litigiosidade tributária, como pretexto para se atribuir a responsabilidade pelo déficit de efetividade jurisdicional tributária ao modelo constitucional de processo tributário, tal como positivado em dias atuais.

É de se concluir, assim, que a abordagem acerca da inefetividade da cobrança judicial do crédito tributário excede a simples maximização dos meios processuais de constrição, e não constitui, à primeira vista, uma patologia do sistema processual tributário (judicial e administrativo) em si, mas, sim, uma anomalia verificada no âmbito de aplicação do próprio sistema tributário material, e que se relaciona, fundamentalmente: 1) à enorme complexidade que caracteriza o sistema tributário vigente; e 2) à belicosidade exacerbada dos sujeitos de direito tributário.


[1] BRASIL. Justiça em Números 2020: ano-base 2019/Conselho Nacional de Justiça – Brasília: CNJ, 2020.

[2] Sobre a distinção entre os inadimplentes estratégico e ordinário, cf. Sorrentino, Thiago Buschinelli (Ed.). Responsabilidade Tributária, Penal e Trabalhista dos Administradores de Pessoas Jurídicas. São Paulo: Polo Books, 2019.


Rodrigo Dalla Pria é advogado, doutor em Direito Processual Civil, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professor do programa de pós-graduação stricto sensu (mestrado) do Instituo Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), coordenador das Unidades do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET em Sorocaba e Presidente Prudente e coordenador do grupo de estudos de “Processo tributário analítico” do Ibet.

Thiago Buschinelli Sorrentino é mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, doutorando em Ciências Jurídicas pela UAL, professor do IBMEC-DF e da Escola da Magistratura do Distrito Federal e conselheiro do Carf. Foi assessor de ministros do STF por uma década.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 19 de setembro de 2021, 8h00