Por Rodrigo Dalla Pria

Sob o pretexto de colaborar com as discussões acerca da reforma do sistema de contencioso tributário brasileiro, veiculamos aqui, no último dia 10 de abril, a primeira de uma série de publicações por meio das quais pretendemos apontar possíveis caminhos que levem ao efetivo aperfeiçoamento daquele sistema. Mais por conveniência do que por questões metodológicas, iniciamos nosso percurso pela desejada intenção de uniformização das regras sobre processo administrativo tributário por meio da edição de “lei nacional” que veicule normas gerais sobre a matéria.

Naquela ocasião, reconhecemos não só a viabilidade, mas também a conveniência de uma lei nacional voltada a estabelecer “normas gerais sobre processo administrativo tributário” que seja capaz de racionalizar, em torno de um modelo básico de contencioso, a torre de babel normativa vigente.

Ressaltamos, ainda naquela oportunidade, que a competência para legislar sobre “direito tributário processual” resta estabelecida pelos artigos 24, inciso I, §§ 1º a 4º, e 146, inciso III, da CF/88 [1], que (1) atribuem poder legiferante concorrente aos entes políticos para dispor sobre processo administrativo-tributário, (2) mas reservam à União a competência para fixar, por lei complementar, normas gerais sobre a mesma matéria, competência esta que, aliás, jamais foi exercida.

A necessidade de edição de lei complementar para tal finalidade, vale reforçar, impõe-se, sob pena de insubmissão dos demais entes tributantes aos preceitos gerais que vierem a ser, eventualmente, veiculados por lei ordinária federal. Devemos compreender, nesse tocante, que a competência privativa da União para legislar sobre direito processual, tal como prevista no artigo 22, inciso I, da CF [2] — e que nos será muito útil, logo adiante, para traçar os limites materiais de um eventual regime geral de contencioso administrativo tributário — não legitima a invocação da lei ordinária como instrumento apto a veicular normas gerais sobre processo administrativo tributário.

Não estamos a falar, insistimos, de regras gerais sobre “direito processual tributário”, mas sim de normas gerais sobre “direito tributário processual”. Afirmar o contrário, significaria admitir algo que foge à razoabilidade, isto é, que todas as legislações locais (estaduais e municipais) até hoje editadas sobre contencioso administrativo tributário são, na essência, inconstitucionais, dada a invasão de um campo material que é privativo da União.

Dito isso, devemos também considerar que eventual superveniência de lei complementar federal que finalmente veicule as tão ansiadas “normas gerais sobre processo administrativo tributário” terá como efeito primário vincular os demais entes políticos àquilo que for objeto de regulação (ver § 4º do artigo 24 da CF), implicando a necessária revisão das legislações locais, que até o momento reinam no vácuo deixado em razão da ausência de legislação nacional.

É nesse específico ponto que ressurge a questão, tão debatida na Dogmática histórica do Direito Tributário, da abrangência do conceito de “normas gerais de Direito Tributário”, agora especialmente direcionada para o âmbito do contencioso administrativo. A indagação a ser feita é a seguinte: admitindo-se a possibilidade de edição, por lei complementar federal, de “normas gerais sobre processo administrativo tributário”, quais os limites materiais dessa competência legiferante da União?

A resposta, longe de ser simples, não se resolve pela mera adoção de uma das duas teorias dogmaticamente concorrentes (dicotômica ou tricotômica) acerca do alcance do conceito de “normas gerais de Direito Tributário”, pois as regras sobre contencioso administrativo tributário podem muito bem ser definidas como típicas limitações ao poder de tributar — preenchendo, assim, os critérios exigidos pelos adeptos da teoria dicotômica —, ou simplesmente serem tomadas como normas sobre “lançamento e crédito tributários”, aos moldes do que preconizam os seguidores da chamada teoria tricotômica.

A despeito das dificuldades, cremos que haja no próprio texto constitucional uma rota segura para a solução do problema, solução esta que pressupõe, no entanto, a admissão de uma premissa teórica desde sempre por nós adotada, segundo a qual a atividade exercida pelos órgãos de contencioso administrativo tributário, conquanto seja subjetivamente (organicamente) administrativa é, sob o ponto de vista funcional, atipicamente jurisdicional, pois exercida sob o pretexto da resolução de conflitos estabelecidos entre os sujeitos de direito tributário.

Com efeito, uma das consequências diretas dessa tomada de posição diz com a necessidade de reconhecermos que o regime jurídico próprio ao processo administrativo tributário é o mesmo do processo judicial, qual seja: aquele fundado na ideia de devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Em outras palavras, atribuir aos tribunais administrativos a condição de órgãos atipicamente jurisdicionais atrai para eles a inafastável obrigação de observar o modelo constitucional de processo (civil).

Pois bem. No contexto das regras que compõem os diversos regimes de contencioso, incluído o administrativo tributário, é possível identificar, de um lado, aquelas que têm típica natureza de “normas sobre processo”, pois dizem com o estabelecimento de direitos e deveres subjetivo-processuais diretamente relacionados às garantias próprias ao modelo constitucional de processo. De outro lado, tem-se aquelas (regras) que consubstanciam “normas sobre procedimento”, pois voltadas a estabelecer a forma pela qual os mencionados direitos e deveres subjetivo-processuais são exercidos.

Assim, uma coisa é a norma legal que estabelece o direito (faculdade) de o sujeito passivo impugnar o lançamento (direito de defesa) e recorrer da decisão (duplo grau de jurisdição) que negou acolhimento à sua defesa (típicas normas de processo); outra coisa é a regra que estabelece a forma por meio da qual o protocolo da defesa e do recurso será realizada ou mesmo o ambiente processual (eletrônico ou físico) no qual os atos processuais deverão ser efetivados (típicas normas de procedimento).

A dualidade processo/procedimento, quer nos parecer, constitui uma excelente medida daquilo que podemos chamar de “norma geral” sobre processo administrativo tributário, restando bem evidente que, sob a óptica constitucional, a importância e a abrangência das chamadas “normas sobre processo” é muito maior do que aquelas atinentes às “normas sobre procedimento”, a ponto de, no âmbito da atividade (tipicamente) jurisdicional exercida pelos órgãos do Poder Judiciário, a Constituição Federal atribuir exclusivamente à União a competência para legislar sobre processo (artigo 22, inciso I, da CF), restando aos estados a competência para editar regras sobre procedimento em matéria processual (artigo 24, inciso XI, da CF).

Nessa medida, são as “normas sobre processo” que dão o tom daquilo que é fundamental aos sujeitos litigantes. E isso, por óbvio, não só no processo civil comum, mas também no contencioso administrativo tributário, de sorte a ser esse, em nosso sentir, o principal (mas não o único) conteúdo a ser normatizado pelo diploma complementar de abrangência nacional que se pretende editar sob a insígnia “norma geral sobre processo administrativo tributário”.

Dito isso, cabe-nos ainda identificar com maior precisão o que viriam a ser, em termos conteudísticos, as tais “normas de processo” que poderiam/deveriam compor um diploma nacional sobre contencioso administrativo tributário, bastando, para tanto, reportarmo-nos aos preceitos normativos que compõem o modelo constitucional de processo.

Nesse contexto, toda e qualquer norma que tiver por finalidade última viabilizar o exercício das garantias constitucionais processuais será, na essência, uma típica “norma sobre processo”.

Trazendo tais ideias para o plano concreto, as regras que dispõem sobre a natureza jurídico-institucional do órgão de julgamento, bem como sobre a forma e os critérios de seleção dos julgadores tributários, por exemplo, por se vincularem aos princípios constitucionais do juiz natural e da imparcialidade, constituem típicas “normas sobre processo”, gerais por natureza.

Já as regras que estabelecem os tipos de defesa e recursos postos à disposição das partes, seus respectivos prazos e efeitos, bem como as instâncias do contencioso administrativo a serem percorridas materializam o núcleo dos direitos (constitucionais) à ampla defesa e ao duplo grau de jurisdição.

Dispositivos voltados ao estabelecimento da plena igualdade entre as partes litigantes no processo administrativo (paridade de armas), bem como aqueles que garantam a prevalência do princípio da presunção de inocência do acusado tributário, vinculam-se à noção constitucional de contraditório.

O mesmo pode ser dito acerca das regras que impõem obrigações e limites à atividade cognitiva dos julgadores tributários, e que se voltam à promoção do direito constitucional à efetiva prestação da tutela jurisdicional, tais como (1) o dever de apreciar toda a matéria debatida e fundamentar todas as decisões; (2) o dever de observar (e se curvar aos) os precedentes judiciais representativos de controvérsia; e (3) o poder de apreciar questões e provas a qualquer tempo.

Por fim, regras que eventualmente estabeleçam prazos para prolação de decisões e encerramento dos processos administrativos podem ser tidas, também, como típicas “regras sobre processo”, por se vincularem à noção, também constitucional, de duração razoável do processo.

O rol de matérias processuais enumeradas, longe de esgotar o campo de autuação de uma possível/eventual lei complementar destinada à estabelecer normas gerais sobre processo administrativo tributário, presta-se, tão-somente, a demonstrar que o critério utilizado (normas sobre processo versus normas sobre procedimento) para a segregação de tais conteúdos constitui um “norte” seguro para que o legislador complementar federal possa manter-se nos limites de sua competência constitucional.

É preciso advertir, no entanto, que mesmo em relação às questões procedimentais propriamente ditas há um considerável espaço para a edição de “normas gerais”, que se destinariam a uniformizar os ritos próprios aos regimes de contencioso administrativo tributário dos diferentes entes políticos tributantes.

Aliás, é o próprio Código de Processo Civil, diploma veiculador de normas gerais por excelência, que, com expressa autorização do artigo 24, inciso I, § 1º, da CF, contém um vasto repertório de “normas sobre procedimento”, circunstância esta que se mostra plenamente justificável, pois a diversidade de ritos fatalmente acarretaria um nível de complexidade normativa que comprometeria o acesso à justiça e a efetividade da jurisdição. Ora, é justamente essa complexidade, geradora de ineficiência administrativa e inefetividade processual, que a edição de um diploma legal veiculador de normas gerais pretende evitar. Seria impensável, por exemplo, que a ação anulatória de débito fiscal (procedimento comum) ou ação de consignação em pagamento (procedimento especial) fossem processadas por ritos distintos nas Justiças Federal e Estadual e, no âmbito desta última, de forma diferente em cada Estado.

O fato é que, em alguns casos, é muito difícil — ou até impossível — separar o “direito subjetivo processual”, veiculado por meio de “normas sobre processo”, da forma por meio da qual ele (direito subjetivo) é concretamente exercido, (“regras sobre procedimento”), o que obriga o “legislador geral” a tratar, concomitantemente, de ambas as matérias.


[1] Artigo 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;
XI – procedimentos em matéria processual;
(…)

  • 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
  • 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
  • 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.

§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.
Art. 146. Cabe à lei complementar:
I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;

[2] Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;


Rodrigo Dalla Pria é advogado, doutor em Direito Processual Civil e Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professor do programa de pós-graduação stricto sensu (mestrado) do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), professor e coordenador do curso de extensão de “Processo tributário analítico” do Ibet, coordenador das unidades do Ibet em Sorocaba e Presidente Prudente e coordenador do grupo de estudos de “Processo tributário analítico” do Ibet.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 10 de abril de 2022, 8h00