Por Eduardo de Paiva Gomes e Daniel de Paiva Gomes

Ao tratarmos da exigibilidade exaurida [1], destacamos que sua constituição pressupõe a emissão da tutela reparadora, cujo objetivo é a requalificação do pagamento realizado pelo sujeito passivo, constituindo-se o denominado indébito tributário. Cabe investigar, agora, quem possui legitimidade ativa para pleitear a emissão da referida tutela, isto é, quem pode deduzir, em juízo, a pretensão destinada à repetição do indébito tributário.

Inserida nessa temática, a controvérsia de que pretendemos tratar está relacionada às situações em que o tributo a reaver é daqueles que comporta transferência do respectivo encargo financeiro, isto é, o montante correspondente ao tributo está, dada sua natureza, “embutido” no preço do bem adquirido.

Trata-se da distinção comumente conhecida — ainda que não acolhida por parte da Dogmática — entre “contribuinte de direito” e “contribuinte de fato”, que põe acento nos efeitos econômicos normalmente emanados por aqueles tributos cujos “ônus financeiros” são transferidos para os sujeitos de direitos que se sucedem na cadeia produtiva, fenômeno precipuamente verificado nos tributos ditos não-cumulativos.

Nessa hipótese, o artigo 166 do Código Tributário Nacional (CTN) estabelece expressamente que, para que seja possível a restituição do tributo pago indevidamente, deve o sujeito passivo 1) provar que assumiu o ônus financeiro do tributo ou, 2) caso tenha transferido a terceiros tal encargo financeiro, tenha autorização expressa para pleitear a devolução.

Diante desse contexto, surge, então, o questionamento que nos movimenta: quem possui legitimidade ativa para pleitear a repetição do tributo que comporta transferência do respectivo encargo financeiro, isto é, quem é o sujeito passivo de que trata o artigo 166 do Código Tributário Nacional?

Pensamos que a resposta ao questionamento em análise nos força a retomar a premissa comum sobre a qual falamos noutra oportunidade — se a legislação processual deve ser analisada e compreendida a partir da relação jurídica de direito material subjacente, parte legítima para pleitear a repetição do indébito haverá de ser, necessariamente, a pessoa que estiver inserida no polo passivo da obrigação tributária extinta pelo pagamento que se quer requalificar como indevido.

Ao tratar do direito à repetição do indébito, o artigo 165 do CTN já denuncia, de plano, o legitimado para o pleito: o sujeito passivo. Ora, nos termos do artigo 121 do mesmo diploma, o conceito de “sujeito passivo” abarca apenas duas classes: 1) o contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação descrita na hipótese da norma instituidora do tributo; e 2) o responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei.

A solução da questão pode ser resumida na seguinte máxima: o sujeito passivo da obrigação tributária é o sujeito ativo da relação de indébito tributário, constituindo tais conceitos face e contraface da mesma moeda.

O sujeito passivo, portanto, é a pessoa inserida na relação jurídica de direito material, potencial ou efetiva, sobre a qual o conflito se coloca, de sorte que o terceiro, ainda que suporte o ônus financeiro do tributo, em tal relação não se vê compreendido.

A relação entre o terceiro (contribuinte de fato) e o sujeito passivo é de índole privada, não se confundindo com a relação jurídico-tributária existente entre sujeito passivo e Fisco. O tributo, em verdade, é apenas uma das parcelas que compõem o preço, mas que não é paga pelo terceiro a título de tributo, já que não está inserido na relação jurídico-tributário e, portanto, nada deve a esse pretexto.

Conclui-se, assim, que o terceiro que suporta o encargo financeiro do tributo (apelidado de “contribuinte de fato”) não possui legitimidade para pleitear a repetição do indébito tributário, por não estar inserido na relação jurídico-tributária extinta pelo pagamento indevido. Somente ao sujeito passivo (o dito “contribuinte de direito”) é conferida a faculdade de repetir o indébito tributário, desde que cumpridos os requisitos do artigo 166 do CTN.

É exatamente essa orientação que restou consolidada, no âmbito do STJ, no REsp repetitivo 903.394/AL [2].

Longe de representar mero preciosismo, a questão analisada assume relevância pelas consequências processuais dela decorrentes: 1) considerado parte legítima o sujeito passivo em quaisquer circunstâncias, sua pretensão há de ser avaliada por sentença com resolução de mérito (pela procedência ou improcedência, não importa); 2) qualificando-se o sujeito passivo como parte ilegítima nas situações em que não observados requisitos do artigo 166 do CTN, a sentença desaguará, necessariamente, na extinção da demanda sem resolução do mérito (artigo 485, inciso VI, do CPC).

Seguida a primeira consequência projetada, teríamos, de um lado, as ações em que, ao longo da demanda, o sujeito passivo comprova o preenchimento dos requisitos previstos no artigo 166 do CTN, caso em sobrevirá sentença de procedência (mérito). Por outro lado, caso o sujeito passivo não logre êxito em satisfazer tais requisitos, caberá à autoridade judiciária proferir sentença de improcedência (igualmente de mérito).

Com isso, o que se quer realçar, em suma, dizer é que a análise do preenchimento ou não dos requisitos do artigo 166, do CTN, a despeito da jurisprudência consolidada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, corresponde a atividade de cognição do mérito da demanda, sendo realizada somente se superada, em juízo anterior, a questão atinente à legitimidade. É dizer: tendo a sentença analisado os requisitos do multicitado artigo 166 de forma positiva ou negativa, a sentença a ser proferida o será com resolução do mérito, quer pela procedência, quer pela improcedência.

Diversamente, caso o juízo constate que a parte autora da ação não é sujeito passivo da relação jurídico-tributária, aí sim será o caso de sentença de extinção do processo sem resolução do mérito por ilegitimidade ativa.

Por fim, registre-se que, excepcionalmente, a jurisprudência do STJ, nos autos do REsp repetitivo 1.299.303/SC, diante da legislação que regula as concessões de serviço público e das peculiaridades da relação envolvendo o Estado-concedente, a concessionária e o consumidor, entendeu que o consumidor (“contribuinte de fato”) “tem legitimidade para propor ação declaratória c/c repetição de indébito na qual se busca afastar, no tocante ao fornecimento de energia elétrica, a incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) sobre a demanda contratada e não utilizada”.

As razões que sustentam o referido precedente, no entanto, longe de negar aquilo que restou consolidado no REsp repetitivo 903.304/AL (somente o sujeito passivo tem legitimidade ativa para pleitear a restituição do tributo), o confirmam, pois elevam o contribuinte de fato, na situação específica das operações realizadas por concessionárias de serviços públicos, à condição de verdadeiro contribuinte de direito, haja vista o fato de a concessionária atuar como verdadeiro longa manus do ente político tributante.


[1] https://www.conjur.com.br/2021-abr-27/opiniao-exigibilidade-exaurida-tutela-jurisdicional-reparadora

[2] “PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. IPI. RESTITUIÇÃO DE INDÉBITO. DISTRIBUIDORAS DE BEBIDAS. CONTRIBUINTES DE FATO. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM . SUJEIÇÃO PASSIVA APENAS DOS FABRICANTES (CONTRIBUINTES DE DIREITO). RELEVÂNCIA DA REPERCUSSÃO ECONÔMICA DO TRIBUTO APENAS PARA FINS DE CONDICIONAMENTO DO EXERCÍCIO DO DIREITO SUBJETIVO DO CONTRIBUINTE DE JURE À RESTITUIÇÃO (ARTIGO 166, DO CTN). LITISPENDÊNCIA. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULAS 282 E 356/STF. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULA 7/STJ. APLICAÇÃO.

1. O “contribuinte de fato” (in casu, distribuidora de bebida) não detém legitimidade ativa ad causam para pleitear a restituição do indébito relativo ao IPI incidente sobre os descontos incondicionais, recolhido pelo “contribuinte de direito” (fabricante de bebida), por não integrar a relação jurídica tributária pertinente.

2. (…)

3. Conseqüentemente, é certo que o recolhimento indevido de tributo implica na obrigação do Fisco de devolução do indébito ao contribuinte detentor do direito subjetivo de exigi-lo.

4. Em se tratando dos denominados “tributos indiretos” (aqueles que comportam, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro), a norma tributária (artigo 166, do CTN) impõe que a restituição do indébito somente se faça ao contribuinte que comprovar haver arcado com o referido encargo ou, caso contrário, que tenha sido autorizado expressamente pelo terceiro a quem o ônus foi transferido.

5. A exegese do referido dispositivo indica que: (…)

6. Deveras, o condicionamento do exercício do direito subjetivo do contribuinte que pagou tributo indevido (contribuinte de direito) à comprovação de que não procedera à repercussão econômica do tributo ou à apresentação de autorização do “contribuinte de fato” (pessoa que sofreu a incidência econômica do tributo), à luz do disposto no artigo 166, do CTN, não possui o condão de transformar sujeito alheio à relação jurídica tributária em parte legítima na ação de restituição de indébito.

7. À luz da própria interpretação histórica do artigo 166, do CTN, dessume-se que somente o contribuinte de direito tem legitimidade para integrar o pólo ativo da ação judicial que objetiva a restituição do “tributo indireto” indevidamente recolhido (Gilberto Ulhôa Canto, “Repetição de Indébito”, in Caderno de Pesquisas Tributárias, n° 8, p. 2-5, São Paulo, Resenha Tributária, 1983; e Marcelo Fortes de Cerqueira, in “Curso de Especialização em Direito Tributário – Estudos Analíticos em Homenagem a Paulo de Barros Carvalho”, Coordenação de Eurico Marcos Diniz de Santi, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2007, págs. 390/393).

8. É que, na hipótese em que a repercussão econômica decorre da natureza da exação, “o terceiro que suporta com o ônus econômico do tributo não participa da relação jurídica tributária, razão suficiente para que se verifique a impossibilidade desse terceiro vir a integrar a relação consubstanciada na prerrogativa da repetição do indébito, não tendo, portanto, legitimidade processual “ (Paulo de Barros Carvalho, in “Direito Tributário – Linguagem e Método”, 2ª ed., São Paulo, 2008, Ed. Noeses, pág. 583).

(…)

14. Conseqüentemente, revela-se escorreito o entendimento exarado pelo acórdão regional no sentido de que “as empresas distribuidoras de bebidas, que se apresentam como contribuintes de fato do IPI, não detém legitimidade ativa para postular em juízo o creditamento relativo ao IPI pago pelos fabricantes, haja vista que somente os produtores industriais, como contribuintes de direito do imposto, possuem legitimidade ativa” .

15. Recurso especial desprovido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008.”


Eduardo de Paiva Gomes é advogado em São Paulo. mestre em Direito Tributário pela FGV Direito SP, especialista em Direito Tributário (PUC-COGEAE/SP), conselheiro suplente do Conselho Municipal de Tributos de São Paulo (CMT – biênio 2020/2022), professor do curso de pós-graduação em Direito Tributário do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), professor do curso de extensão “Processo Tributário Analítico” do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

Daniel de Paiva Gomes é advogado em São Paulo, doutorando (PUC) e mestre (FGV Direito-SP) em Direito Tributário, especialista em Direito Tributário Nacional (PUC) e Internacional (IBDT), coordenador da subcomissão de Tributação da Economia Digital da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB-SP, pesquisador do Instituto de Aplicação do Tributo (IAT), professor de cursos de extensão e pós-graduação lato sensu no Ibet e no IBDT, respectivamente e pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

Fonte: Publicação original em Revista Consultor Jurídico, 13 de junho de 2021, 8h00