Por Rodrigo Dalla Pria

O Senado e o Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de buscar soluções para o aperfeiçoamento do vigente modelo de solução de conflitos tributários, editaram a Portaria Conjunta nº 01/2022, por meio da foi nomeada Comissão de Juristas especialmente constituída com vistas à elaboração de propostas legislativas voltadas à modernização do plexo normativo a que costumamos denominar “sistema processual tributário””.

Diante disso, parece-nos oportuna a utilização desse precioso espaço para a publicação de uma série de artigos, sequenciais ou não, voltadas à análise das diferentes propostas de reforma do contencioso tributário cogitadas e discutidas no âmbito da comissão de reforma recém instituída.

Iniciaremos, por mera conveniência, pelas questões atinentes ao contencioso administrativo tributário.

Segundo foi possível apreender das exposições feitas por ocasião da primeira audiência pública da qual participaram juristas com larga experiência prática e acadêmica no âmbito do contencioso tributário, uma das medidas que contam com maior aderência diz com a necessidade de edição de uma lei nacional voltada à instituição de um “regime geral de contencioso administrativo tributário”, diploma que veicularia “normas gerais” a serem observadas por todos os entes políticos tributantes.  

A despeito do amplo acordo acerca da necessidade de uma “lei geral de processo administrativo tributário”, não existe o mesmo consenso acerca dos fundamentos constitucionais e, principalmente, da amplitude material da competência da União para legislar sobre o assunto.

É que o texto constitucional não contém dispositivo específico destinado a estabelecer e delimitar a competência de cada ente político tributante para legislar acerca de processo administrativo-tributário, havendo dúvidas, inclusive, acerca na natureza jurídica das normas sobre processo administrativo tributário, isto é, se são regras de “direito administrativo”, de “direito processual” ou de “direito tributário”.

Parece-nos razoável, todavia, deduzir que as normas sobre “processo administrativo-tributário” não sejam preceitos de direito processual no sentido prescrito no artigo 22, inciso I, da CF/88, o qual se volta a regular a atividade exercida no âmbito daquilo que, historicamente, vem sendo chamado de “direito judiciário”, estando reservada à União a prerrogativa exclusiva para legislar sobre o assunto. Também não parecem ser típicas regras de direito administrativo, o que significaria conceder a cada um dos entes políticos tributantes a mais absoluta exclusividade para legislar sobre a matéria.

Sendo o processo administrativo-tributário a instância na qual os entes políticos exercem o autocontrole da legalidade da atividade impositiva, não fica difícil concluir que as regras que regem os contenciosos administrativos fiscais constituem típicas normas de desempenho da competência administrativa tributária, pois reguladoras do modo de aplicação do direito material tributário quando realizada sob o pretexto da conflituosidade, razão pela qual, por expressa determinação constitucional (art. 5º, incisos LIV, LV e LXXVIII), devem observar o esquema dialético (contraditório) característico do processo jurisdicional.

Que fique muito bem esclarecido, nesse tocante, que a circunstância — admitida por nós desde sempre — de a atividade exercida pelos órgãos de contencioso administrativo tributário ser atipicamente jurisdicional não infirma a conclusão de que, sob a óptica da repartição das competências legislativas constitucionais, as regras sobre processo administrativo tributário constituírem verdadeiras “regras de direito tributário”.

Sob tal perspectiva, talvez seja mais correto falarmos em “direito tributário processual administrativo” do que, propriamente, em “direito processual administrativo-tributário”, o que nem de longe induz qualquer necessidade de deixar de utilizar a primeira expressão, consagrada que é pela dogmática especializada.

Diante disso, a competência para dispor sobre “direito tributário processual” é estabelecida pelas regras veiculadas nos artigos 24, inciso I, §§ 1º a 4º, e 146, inciso III, da CF/88, que atribuem poder legiferante concorrente aos entes políticos para dispor sobre matéria de tributos, incluídas, neste escaninho, as regras atinentes ao controle interno da atividade impositiva, isto é, normas sobre processo administrativo-tributário.

São os mesmos dispositivos constitucionais acima referidos que reservam à Uniãoa prerrogativa de fixar, por lei complementar, normas gerais sobre processo administrativo-tributário, competência que, desafortunadamente, nunca foi levada a cabo.[1] Por essa razão, o que se tem, desde sempre, é uma verdadeira torre de babel normativa, onde cada entre federativo dispõe de plena liberdade para legislar concorrentemente acerca da matéria.

Essa contingência dificulta análise minuciosa do contencioso administrativo-tributário tal qual positivado nas diversas legislações que regulam o processo administrativo fiscal no âmbito dos diferentes entes políticos, algo que somente se torna plausível quando o foco temático da abordagem está direcionado a um específico ente político tributante.

De toda sorte, isso não nos impede de identificar alguns padrões institucionais que se repetem nas legislações oriundas dos diferentes entes federados, os quais certamente decorrem da influência exercida pela longeva experiência construída no âmbito do contencioso administrativo tributário federal, cujo início nos remete aos Conselhos de Contribuintes surgidos a partir da década 1930.

Numa análise superficial das legislações que disciplinam os processos administrativos tributários no âmbito dos Estados, é possível traçar um panorama geral acerca dos diversos modelos adotados, o qual nos revela padrões normativos comuns adotados pelos respectivos órgãos. Assim é que: (i) 88% dos órgãos de contencioso administrativo tributário estão diretamente subordinados aos Secretários de Fazenda estaduais; (ii) 96% deles não dispõem de carreiras específicas de julgador tributário; (iii) em 75% dos casos, a representação dos interesses fiscais é realizada por membros da Procuradoria-Geral do Estado; (iv) em 89% das cortes administrativas, os procuradores do Estado não têm a prerrogativa de participar do contencioso administrativo na condição de julgadores; e, por fim, (v) 96% dos contenciosos administrativos tributários contam com a participação de representantes do sujeito passivo, conquanto (vi) em somente em 77% (setenta e sete por cento) deles essa participação é paritária.

Assim, se a sistematização dos dados atinentes aos contenciosos administrativos tributários estaduais e municipais constitui tarefa árdua e hercúlea, a identificação de padrões normativos comuns entre eles pode ser capaz de revelar aquilo que fora exitoso na experiência histórica de cada qual e, também, aquilo que vem se mostrando ineficaz e problemático.

Esses dados, quer nos parecer, constituem um excelente ponto de partida para a elaboração de uma proposta de positivação de um regime geral de processo administrativo tributário que seja nacionalmente eficaz, seja no que tange à estrita observância e respeito às cláusulas do devido processo legal (constitucional) administrativo, seja na promoção da desejada eficiência fiscal.

Evita-se, assim, a ilusão — e a armadilha — de que uma “revolução” legislativa, que despreze a experiência histórica nacional de um século para privilegiar soluções mágicas, inspiradas inclusive em modelos alienígenas, seja capaz de pôr fim aos problemas e gargalos do contencioso administrativo tributário, os quais, conforme alinhavamos em artigo anteriormente veiculado nesta coluna, decorrem muito mais de problemas oriundos do sistema material tributário do que, propriamente, dos regimes processuais de solução de lides fiscais vigentes.[2]

É que nesse específico contexto que, nos artigos que a este se seguirem, procuraremos tratar, de forma mais detida, sobre essa experiência secular e, consequentemente, apontar soluções viáveis para o aperfeiçoamento do processo tributário, administrativo e judicial.


[1]. Tramita no Congresso o projeto de Lei Complementar 381/2014, que tem por objetivo fixar normas gerais sobre processo administrativo fiscal aplicáveis a todos os entes políticos tributantes, o que reduziria significativamente a dificuldade que se tem atualmente de sistematizar e padronizar o processo administrativo tributário em âmbito nacional.

[2] https://www.conjur.com.br/2021-set-19/processo-tributario-efetividade-processo-problema-contencioso-tributario-brasil


Rodrigo Dalla Pria é advogado, doutor em Direito Processual Civil e Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professor do programa de pós-graduação stricto sensu (mestrado) do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), professor e coordenador do curso de extensão de “Processo tributário analítico” do Ibet, coordenador das unidades do Ibet em Sorocaba e Presidente Prudente e coordenador do grupo de estudos de “Processo tributário analítico” do Ibet.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 10 de abril de 2022, 8h00